Retratos na memória
- ESPAÇO MATÃO COMUNICAÇÕES
- 31 de ago. de 2023
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Nasci em Matão, no primeiro dia do mês que a cidade faria 70 anos. Em dezembro daquele icônico ano de 1968 (o ano que não terminou, segundo o escritor Zuenir Ventura), o bebê de pouco mais de 4 meses “atuava”como menino Jesus nas apresentações de um presépio vivo na Chácara Primavera, enquanto a 750 Km dali, na capital do país, o golpe que se iniciara em 1964 dava sua cartada mais violenta, pela edição do famigerado AI-5, que ceifou os sonhos de milhões de brasileiros e tirou a vida de algumas centenas de compatriotas. Talvez a infeliz coincidência das datas, o antagonismodas duas cenas distantes no espaço, e o espaço propriamente dito onde as cenas se sucederam, tenham sido responsáveis pelo comprometimento com o qual o pequeno menino Jesus do interior de São Paulo tentou conduzir sua vida. Matão, um dos espaços propriamente ditos, foi responsável por quase tudo.
Foram 17 anos entre a chegada e a partida, embora o conceito de partida, nesse caso, seja dúbio, pois deixei de morar em Matão, mas Matão nunca deixou de morar em mim. Cresci em uma cidade que não existe mais além das minhas lembranças, mas que é a única que ainda hoje enxergo, sempre que nela retorno (embora o conceito de retorno, nesse caso, seja dúbio, pois...). Na Rua José Bonifácio 560, o endereço que pra mim é o sinônimo da felicidade, vivi as transformações da criança para o adolescente e do adolescente para o adulto, misturado com as transformações que a cidade sofria, fruto do tão desejado progresso. As atividades religiosas estiveram sempre presentes na infância, como não poderia deixar de ser para os descendentes dos italianos que decidiram fazer a América nesse pedaço de chão: fui missionário-mirim na famosa missãozinha de meados dos anos 70; coroinha do saudoso Padre Amador, na Igreja Matriz; apóstolo na missa do lava-pés, na quinta-feira da paixão; pajem na procissão de Corpus Christi, e tocador de violão no coral da igreja. Entretanto, os muito beatos que me perdoem, mas foi a vida mundana (no sentido de que pertence ao mundo material, e não espiritual),nessa chamada Matão de meu Deus, que forneceu o tijolo e o cimento para construir a base sólida, sobre a qual fragmentos de diferentes substâncias se agregaram, para se transformar naquilo que sou.
Matão nos anos 70 e 80 era uma escola de vida, de braços abertos para acolher quem quisesse estudar. Em Matão aprendi a jogar basquete, tendo o querido Zé Emílio como primeiro treinador, no recém-inaugurado Ginásio de Esportes, e acabei sendo atleta do saudoso Estoril Tênis Clube, onde além de participar dos campeonatos da Federação Paulista de Basquete, tive a alegria e o privilégio de representar a cidade em diversas competições, como em Jogos Abertos e Regionais. Com o grande mestre AlzirBiava aprendi a jogar xadrez, e fiz parte da equipe do honroso Clube de Xadrez de Matão, também defendendo as cores da cidade em competições regionais. Na EEPSG Prof. Henrique Morato, onde fiz praticamente toda a minha formação, fui presidente do centro cívico, e tive mestres do quilate de Azor Silveira Leite, Silvio Mattos de Carvalho, Luiz Fontana, Armando Theodorico Gomes, DeaselvaGorgatti, Octacílio Ribeiro, Grillo, José Maria, Antonio Carlos Manzini, UdeBaldan, Dorival Comar, IrideCicogna Gimenez, Palma Pinotti, LucyCicogna, Iolanda Bichiato, ItalinaBidutti, Iracema Fecchio, Elza Baldan, dentre tantos outros nomes brilhantes, que antecipadamente me desculpo por não citar aqui. E de LeyleGorgattiZarbin, que a natureza me presenteou na figura de mãe. Participei como ator, redator e co-fundador do grupo teatral Cinamomo, deliciosamente dirigido pela Lygia Nicolucci. Ainda criança, tive aulas de violão com a TchelaEnge, e participei com tantos amigos de grupos corais que ela entusiasticamente organizava, além das deliciosas audições anuais, quase sempre apresentadas no palco do Sindicato dos Metalúrgicos de Matão.

No início da adolescência, tínhamos a chamada turma da chupeta, assim alcunhada pela tenra idade dos seus membros, que se reunia na praça da igreja, ao redor do Baitakão. Mas nessa época o que me fascinava era a possibilidade de encontrar e interagir com o povo mais velho, que aprendi a admirar no antigo bar Contramão, ainda criança, junto com meu pai. A virtuose com que meu pai toca seu bandolim é fartamente conhecida na cidade, e sua paixão pela música propiciou que eu crescesse em uma casa onde saraus musicais faziam parte do cotidiano, recheados com vários instrumentos de muitos amigos de meus pais, que se mesclavam àdoce e afinadíssima voz da minha mãe. Nesses eventos aprendi a gostar de ouvir e de reproduzir música, e fui introduzido aos clássicos da música sertaneja, ainúmeros boleros e guarânias, além de canções imortalizadas nas vozes de Maysa, Nelson Gonçalves, Orlando Silva, Dolores Duran, Elizeth Cardoso, dentre tantos outros. Esse mundo me abriu as portas, ainda menino, para participar de rodas de música e de conversa que se iniciavam no Pilequinho ou no Chicken-In (onde eu ouvia e aprendia muita música e muita “vida”), e quase sempre terminavam em deliciosas serenatas pelos lares de matonenses ilustres, que na maioria das vezes nos recebiam com um sorriso e uma garrafa de whisky.
A noite matonense daquela época pode ser contada pelos bares da moda. Em ordem pseudo-cronológica: Contramão, Baitakão, Pilequinho, Chicken-In, Jandaia, Karaokê, Chopão, Bigal, Micheloni. Pode ser contada também pelos maravilhosos bailes na Sorema e no Grêmio, incluindo os bailes de carnaval, que renderam histórias que ainda hoje são divertidamente reproduzidas pelas pessoas da minha geração. A primeira boate dessa época foi a Juá, com uma trilha sonora refinadíssima recheada de clássicos do rock. E que ficava no prédio da antiga sauna, colada a um bar memorável, o bar cultural.
Trocávamos experiências. A cultura nos chegava pelos caminhos mais improváveis, mas era compartilhada e saboreada por todos. Assim, numa cidade pequena do interior de São Paulo, nas mesas dos bares, nas ruas, nos intervalos escolares, compartilhávamos livros, discos, experiências, e falávamos sobre Paulo Leminski, Cacaso, Charles Bukovski, Herman Hesse, Alice Ruiz, Mario Vargas Losa, Jorge Amado, Carlos Drummond, Gabriel Garcia Marques. Ouvíamos o que de melhor existia na MPB, na Bossa Nova, no Rock e no Jazz, assim como algumas preciosidades que nos chegavam em fitas K7 incontavelmente replicadas, como Elomar, Marlui Miranda, Língua de Trapo, Premeditando o Breque, Grupo Rumo, Xangai. E ainda tínhamos ouvidos atentos (e críticos) à semente do Rock Nacional dos anos 80, e à maravilhosa música brega que se fazia na época.
A cidade era realmente pequena, mas a tornávamos gigante. Os pequenos hábitos, aqueles que fazem parte das ações cotidianas que quase nunca atentamos, vivem na lembrança até hoje: tomar sorvete na sorveteria Dalmiglio; namorar ao lado da gruta de pedra da igreja; ir ao cine Yara ou ao Polytheama, e na semana santa, assistir “Vida, Paixão e Morte do Nosso Senhor Jesus Cristo”; comer as coxinhas da D. Saula; ir às procissões da semana santa; curar a ressaca com um Xantinon e Plasil na veia, no Tanaka; ler a coluna do Januário Groppa na Comarca; comer o carneiro preparado pela D. Malvina, servido pelo Sr. Juvenal, nos almoços do Clube da Boa Vista; pescar no São Lourenço, e depois no lago da Sorema; jogar bola na rua; treinar no Ginásio de Esportes, e conversar com os Srs. Geraldo e Aparecido; ouvir a Corporação Musical Saudades de Matão no coreto aos domingos; comer jambolão na Sorema; conversar, beber e aprender lições de vida com o saudoso e maravilhoso “Seu Theo”; imitar o “Seu Theo”; comprar brinquedo no Armazém Santo Antonio; fazer churrasco nos sábados à tarde; encontrar o Dilão nas madrugadas; andar pelas ruas, sem rumo; ir às festas na chácara do saudosíssimo Zé Próts; cantar um samba com a não-menossaudosíssima Goiaba; comprar revistas na Banca do Guerreiro; se encantar com as caixas de chapéus da Casa Feres;invadir quintais para pegar frutas maduras; ir à festa do refrigerante no José Inocêncio da Costa, e andar no trenzinho da coca-cola (um cruzeiro jogado fora); ir à missa de domingo com o Pe. Amador ou o Pe. Gino; irritar o Bigal quando seu bar estava abarrotado; frequentar os parques de diversão e os circos; ir à FACIMA; roubar laranja dos caminhões da Citrosuco; ir às quermesses das diferentes paróquias; comprar discos no Filé; tomar cerveja no outro Filé; passear pelas ruas do comércio à noite, em dezembro; participar, em todas as suas incontáveis nuances, da maior festa popular da região, o Corpus Christi.
Nos primeiros dias de março de 1986, no ano em que completei 18 anos no primeiro dia de agosto, tomei o ônibus da viação São Manoel em direção a Campinas, ciente que aquele era um caminho sem volta, rumo ao meu futuro. Mas desde aquele dia e até hoje (esse presente que é o futuro de outrora), nunca rompi o vínculo com Matão. Nos primeiros anos era um vínculo físico, que ia além da óbvia necessidade de estar com meus pais, na minha casa, nos finais de semana: em Matão eu votava, ia a médico e dentistas, cortava o cabelo no Guaraci, ia beber no Bigal e no Micheloni, tinha a necessidade (ainda tenho) de continuar encontrando os amigos e enriquecendo ainda mais a troca de experiências. Hoje, vivendo muito mais distante e com responsabilidades maiores que as planejadas, as visitas são mais esporádicas, mas o vínculo ainda está lá, como que lembrando que existe um cordão umbilical. É o vínculo indestrutível associado ao fantástico sentimento de pertencimento. Pertenço a Matão, e a nenhum outro lugar do mundo. E esse pertencimento carrega tudo o que sou, e tudo o que faço. Em Matão me sinto em casa, e sei que a cidade me retribui e se reconhece como tal.
Passados 55 anos do nascimento, prestes a comemorar 125 anos da sua cidade, o menino Jesus do presépio vivo não mais existe, nem tampouco a Chácara Primavera ou o asqueroso AI-5. O menino lutou (e ainda luta) por democracia, que conquistamos a duras penas, e que se mostra robusta, a despeito das recentes e insanas tentativas de molestá-la. A cidade cresceu, engoliu a Chácara Primavera, extrapolou (e muito) os limites físicos do que era há 55 anos, e trouxe no seu progresso a concretização de alguns dos desejos que o menino, quando se tornou jovem, sonhava pra ela, como a existência de uma cena cultural com identidade própria (poucos lugares do Planeta podem se gabar de possuir um grupo musical da qualidade do Coro e Osso, por exemplo), e a possibilidade de educação pública em todos os níveis, com qualidade, que permite que o jovem matonense possa concluir um curso universitário ou um curso técnico especializado. Hoje, sei que o pertencimento não é uma mera conjunção geográfica, mas uma necessidade orgânica. Preciso me embriagar do cheiro de laranja, do calor avassalador, do amor do pai, do abraço dos amigos, e das lembranças que cada pedaço daquele chão, mesmo após as sucessivas modificações, ainda me trazem. Diferente da Itabira do Drummond, Matão, pra mim, é muito mais que um retrato na parede. É um conjunto de infinitos retratos, na alma e na memória. Mas tal qual para o poeta, como dói.
Aldo José Gorgatti Zarbin
De vendedora de pirulitos à Cidadã Matonense: a educação como instrumento de transformação de vida.

Com muito orgulho em 11 de maio de 2023 recebi o Título de Cidadã Matonense, decorrente da indicação do Vereador Davison José Tosadori. Evento lindo e emocionante que contou com a presença de minha família, muitos amigos, alunos, professores, colegas de trabalho, autoridades e pessoas impactadas pelo meu trabalho em Matão ao longo de 36 anos.
Essa trajetória só foi possível porque meus pais (Salvador e Thereza: já falecidos) acreditaram que a Educação seria o único caminho para enfrentarmos a pobreza. Família grande (sete filhos) e muitas dificuldades financeiras, mas um projeto de vida que contemplava fazer um curso superior. Eu e meus irmãos vendemos muitos pirulitos na “Escola Estadual Dr. João Baptista Pereira de Almeida” em Américo Brasiliense onde moramos por muito tempo. Ensino público sempre esteve presente nas nossas vidas, razão pela qual lutar por Educação Pública para todos faz parte do nosso cotidiano.
Muitas dessas lutas se misturam com a proposta de atuação social da Citrosuco, empresa que me contratou em 1987, como Assistente Social, recém formada e cheia de sonhos, na busca de uma sociedade mais justa e diversa.
Foram muitos desafios, muitas transformações, inclusive profissionais, mas esse sonho continua a sustentar minhas opções de vida, quer seja como profissional da área social, quer seja como Docente no IMMES onde atuo junto aos alunos do Curso de Administração, quer seja como cidadã do mundo.
Nesses 36 anos constituí minha família – meu porto seguro –construí minha carreira marcada pela busca constante de aprendizado e pelo desejo de viver esse aprendizado na prática, e o que me deixa feliz nessa trajetória é que além de ter histórias bacanas pra contar eu posso conviver com as pessoas impactadas por essas histórias.
Também penso, parafraseando Rubem Alves, que “mares calmos não produzem bons marinheiros. Mares revoltos é que fazem bons marinheiros”. Enfrentei períodos de mares calmos, mas também enfrentei tempestades que me tornaram a pessoa que sou, que definiram as causas pelas quais luto, entre elas: o acesso à educação de qualidade e com equidade e o respeito à diversidade, qualquer que seja o marcador social que a caracteriza: gênero, raça, etnia, orientação sexual, credo, condição econômica, etarismo, entre outras
Muitas vidas foram impactadas pelos projetos que desenvolvo e acompanho como profissional ou como voluntária. Muitos jovens passaram pelo Projeto Pescar e conseguiram redefinir seu projeto de vida a partir das oportunidades que conquistaram, outros tantos foram impactados perlo Programa Cidadania que possibilitou terem espaço de escuta e de posicionamento nas instâncias políticas; muitas crianças e adolescentes das escolas municipais foram contempladas pelo PVE (Parceria pela Valorização da Educação) e junto com professores e gestores apoiados pela Secretaria de Educaçãoprovocaram o avanço nos índices educacionais e na aprendizagem.Como voluntária do Matão + Verde e a nossa Carriola do Saber estamos contribuindo para que Matão seja uma cidade leitora e referência no cuidado com o meio ambiente.Esses são alguns exemplos.
E fazendo uma analogia com o Matão + Verde entendo que é preciso preparar o solo para receber a semente ou a muda, é preciso cuidar para a árvore crescer saudável e dar bons frutos, mas acima de tudo é preciso ter raízesfortes e profundas para permanecer firme, oferecer sombraque abriga e o fruto que alimenta. Esse tem sido o meu fazer no dia a dia.
No meu discurso no evento da entrega do Título de Cidadãeu disse essa frase que compartilho com vocês finalizando essa matéria: “Ser Cidadã Matonense me enche de orgulho, mas também de responsabilidade – UMA SENHORARESPONSABILIDADE – como escreveu meu querido amigo e jornalista Rogério Bordignon em dezembro de 2022 e que com sua lente atenta registrou muitos momentos dessa trajetória e com seus textos eternizou todos eles. Responsabilidade porque o meu fazer impacta na vida das pessoas e exige um compromisso ético que vai além de diplomas e títulos.
Esse é o legado que construo todos os dias.
Margareth Ribeiro da Silva – Margô
Mãe da Natália, Docente e Especialista ESG no Tema Social




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