FRATERNIDADE, FOME E LITERATURA
- ESPAÇO MATÃO COMUNICAÇÕES
- 18 de dez. de 2023
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Pela terceira vez, a temática do fome é tratada pela Igreja do Brasil, na Campanha da Fraternidade, que ocorre, em especial, no período da quaresma, mas que deve estender-se ao longo de todo ano, refletindo sob o aspecto do viés pastoral-social, a missão profética de Cristo no mundo. Pela sexagésima vez, desde l964, em edição nacional, a Campanha da Fraternidade é a expressão do despertar do espírito comunitário cristão, na busca do bem comum, pela renovação da ação evangelizadora, na construção de uma sociedade justa e solidária.
Em 1975, o tema foi: “Fraternidade é repartir” e lema: “Repartir o pão”. Em 1985, o tema foi: “Fraternidade e Fome” e lema: “Pão para quem tem fome”. Em 2023, sob o tema: “Fraternidade e fome”, a Igreja apresentou de forma mais incisiva, o lema: “Dai-lhes vós mesmos de comer!” (Mt 14,16). Esse pedido do Cristo grita aos nossos ouvidos num Brasil em que os números da fome, segundo dados apresentados no texto-base da Campanha, se mostram alarmantes: “Em abril de 2022, apenas 41,3% dos domicílios brasileiros tinha seus moradores em Segurança Alimentar (SA), 58,1% viviam em algum nível de Insegurança Alimentar (IA), dos quais 15% conviviam com a fome.
Em números absolutos, isso significa que, do total, de 211,7 de brasileiros e brasileiras, 125,2 milhões convivem com alguma Insegurança Alimentar (leve, moderada ou grave), dentre os quais, mais de 33 milhões de pessoas enfrentam a fome em nosso País. São 15,5% da população brasileira! É como se todos os habitantes das sete maiores cidades do Brasil – São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Salvador, Fortaleza, Belo Horizonte e Manaus – ou todos os peruanos passassem fome. (MANUAL CF – 2023, p. 36). Grifo do autor.
Esses dados, cujas causas estruturais em nosso país estão associadas à estrutura fundiária que coloca nosso sistema produtivo agrícola a serviço de um sistema econômico-financeiro, agroexportador na forma de commodities, deixando, em segundo plano, nossa população que fica em constante estado de alerta, diante da situação famélica, gerada pela insegurança alimentar. Desemprego e subemprego, bem como a informalidade, também contribuem para que nosso trabalhador possa se alimentar com dignidade. Novas formas de sublocação e terceirização que surgem no mercado de trabalho, geram modernas formas de escravidão que também acumulam fome e miséria no país.
Associado a todo esse cenário, temos uma política salarial perversa, alimentada pela busca desenfreada pelo lucro que, associada ao desmonte de nosso sistema alimentar e nutricional, são algumas das raízes da fome no país. Como escola e instituição escolar, devemos levar nossos alunos numa perspectiva ecumênica a refletir sobre esta problemática e assim o fizemos, realizando a 29ª Campanha da Fraternidade na escola, que teve seu ápice no dia 5 de abril de 2023, ocasião em que ocorreu, como gesto concreto, a arrecadação de alimentos, para doação de cestas básicas, para a AVCC – Associação de Voluntários de Combate ao Câncer.
Esse momento marcou, na vivência do espaço escolar, um momento celebrativo e solidário, em torno de dois problemas comuns que afetam o nosso país e a comunidade local, a fome e o câncer. Na celebração ecumênica, diversas representações religiosas, compartilharam o espaço escolar, para celebrar, fraternalmente, a luta pela construção de uma comunidade melhor. A culminância desse processo em torno da temática Fraternidade e fome, ocorreu no dia 21 de novembro, com a realização do 19º Sarau e Mostra Literária, cujo tema é: A fome na literatura.
A EE Vereador Antônio Comar de Dobrada, ao abrir suas portas à comunidade e alunos de outras unidades escolares, os convida a uma imersão na temática da fome e nas diversas maneiras, em especial, a literatura brasileira, por meio da apresentação do sarau, encenação, leitura de trechos de obras, poemas, músicas e danças. A mostra literária contará com a exposição de trabalhos produzidos pelos alunos, sobre a temática, bem como livros relativos ao tema. Na literatura brasileira podemos encontrar diversos modos de refletir sobre a questão. A professora Ana Kiffer, ao refletir sobre esta temática, apresenta um breve panorama, o que denomina, romancistas da fome no Brasil. Além do que chama, a passagem do tabu à estética da fome, ao traçar um paralelo entre a obra de Josué de Castro e Glauber Rocha.
Sendo a literatura uma forma de denunciar, registrar, pela palavra, as questões sociais, a fome se apresenta ao longo da história do Brasil e de seus períodos literários. Portanto, a fome é vista sob a perspectiva de uma catástrofe coletiva que aparece no cenário literário brasileiro, no libro de Rodolfo Teófilo, intitulado, A fome (1890). Neste livro, o autor narra a grande seca do Ceará de 1878. Na década de 1930, no que se denomina período da fundação do regionalismo na literatura, Rachel de Queiroz, em O Quinze, volta à temática da narrativa da seca do Ceará, no ano de 1915. Compara à visão de Teófilo, Queiroz apresenta um estilo mais ameno e poético, relativo à essa temática.
O romance de José Américo de Almeida de 1928, A Bagaceira, trata também da questão social e da vida dos retirantes que surgem nas bagaceiras dos engenhos, quando ocorrem as estiagens e não são bem vistos pelos brejeiros, que são os trabalhadores permanentes, no caso, os da Paraíba. José Lins do Rego, nas obras do ciclo da cana de açúcar, vai narrar a transição do engenho para a usina, e também, mostrar a desigualdade social presente no Nordeste e na região da Paraíba e Pernambuco.
Mas será com Graciliano Ramos, na emblemática obra: Vidas Secas, que a crueza da fome aparecerá mais de forma intensa. Ao narrar o episódio de uma família de retirantes da seca, composta pelo vaqueiro Fabiano, sua mulher Sinhá Vitória, de dois filhos chamados, o mais velho e o mais novo e a cachorra Baleia, esse romance em terceira pessoa, faz do silêncio, a grande personagem da narrativa. Ao dar nome tão grandioso à cachorra e ao nomear os filhos do casal, Graciliano indica aspereza desses brasileiros, pois muitas crianças não sobreviviam à miséria, o que levava seus pais, muitas vezes, a só nomeá-las, caso conseguissem sobreviver, depois de uma certa idade.
Diferente de Teófilo, Ramos não bestializa o homem faminto, mesmo ao aproximá-lo do animal, pela fome, em que tudo procura interrogar: quais são os limites que definem o que é ser humano? A grande denúncia feita por Josué de Castro, no clássico, Geografia da fome, 1945, o tabu da fome como um tema proibido no país, ganha, em Glauber Rocha, em 1965, uma estética, cuja cultura da fome, gera esse surrealismo tropical.
Hoje, com o resgate da obra de Carolina Maria de Jesus, em especial, Quarto de despejo, 1960, vemos que a luta contra a pobreza e a fome, se alia com a palavra na luta contra o racismo e a exclusão social, em uma constante e diária denúncia que devemos fazer na busca por um país menos excludente e um pouco mais justo e fraterno para todos os brasileiros.
Paulo Cesar Cedran
Mestre em Sociologia e Doutor em Educação Escolar –
FCL – UNESP ARARAQUARA – SP.




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